terça-feira, 17 de novembro de 2009

Casa Abatida



António Ferreira Soares *
Nascido em Loureiro de Baixo, em Grijó, a 28 de Janeiro de 1871
Nunca escondeu o amor e paixão que tinha e dedicava à sua Terra Natal, mas também verdade que nutria pela Freguesia de Nogueira da Regedoura uma forte paixão.
Prova cabal que podemos amar mais que uma Terra na qual tenhamos criado raíses.

De familia muito modesta, cedo inciou estudos dirigidos à vida eclesiástica. Era o corrente, nas aldeias, com crianças da sua condição. E não deixava de ser também frequente ao fim de algum tempo os jovens desse modo encaminhados no estudo buscassem novos rumos.
Assim aconteceu com António Ferreira Soares, que fez no Porto o que ao tempo se chamava "repetir os preparatórios" e em 1899 concluía em Coimbra o curso de Direito.
A ciência jurídica não o entusiasmava e quis para si o estatuto de "músico afinado"- o aluno não dava nas vistas por ser bom nem por ser mau. Lia muito, fazia traduções para editoras, escrevia para jornais, versejava, era republicano.
E no seu 4º Ano foi a concurso para professor de liceu- 1ºgrupo, Português e Latim.

Era um conjunto de provas exigentes em que pontificava um mestre de latinidade, Professor Dantas. Prestou as provas com brilho. E concluído o curso de Direito.

No ano seguinte casou em Nogueira da Regedoura (contígua a Grijó) e foi professor do liceu de Viana do Castelo.

No Jornal REPÚBLICA de 4-10-1960, comemorativo dos 50 anos do regime republicano, Rodrigo Abreu evoca os tempos da propaganda naquele distrito e lembra:= Era então professor do Liceu de Viana o escritor e jornalista dr. Ferreira Soares, que em Viana dirigia a politíca republicana com tanta dignidade e talento..................»
e noutro passo:Em 7 de Junho de 1908, tendo como director o dr. António Ferreira Soares, sai o bi semanário O POVO, que desde logo ocupa papel dominante de combate e de doutrina, com uma colaboração verdadeiramente notável onde, além do seu director, jornalista brilhante, doutrinador admirável, prestigioso, colaboram.........»e segue-se uma longa enumeração com nomes como José Caldas, João da Rocha, Augusto Gil, António Granjo, Álvaro de Castro, António José de Almdeida, GUERRA JUNQUEIRO, JOÃO DE BARROS, Pedro Vitorino, Cláudio Basto, D. Ana de Castro Osório e Bruno Sampaio.

Mas Ferreira Soares não descurava a função docente; e pela vida fora a cada passo se lhe dirigiam senhores que em rapazes tinham sido seus alunos e que guardavam do professor uma recordação grata e afectuosa.Com o advento da República teve maneira de descansar um pouco das lides que o assoberbavam e nessa época deu colaboração a vários jornais e revistas - ainda O POVO, a AURORA DO LIMA , à REVISTA LUSA, entre outros.

Pela sua luta contra a Monarquia passou vinte e tal dias na prisão.

GOVERNADOR CIVIL DE VIANA DO CASTELO

Logo após a Monarquia do Norte a qual lhe tinha custado vinte e tal dias na prisão é convidado e aceita ser Governador Civil de Viana do Castelo para evitar perseguições aos monárquicos».

No opúsculo que publicou a seguir - VIANA NA INSURREIÇÃO DE 1919 - a forma literária transcende hoje o interesse, mais local, dos sucessos narrados.
CARGO DE CONSERVADOR DO REGISTO PREDIAL DE SANTA MARIA DA FEIRA

Perante este novo desempenho passa a residir em Nogueira da Regedoura, mas a sorte depressa lhe começa a ser adversa.

Fica viúvo aos 50 anos de idade, passa a residir com os seus 4 filhos.

Vive alguns anos de vida repousada em que as suas funções oficiais não lhe exigem o tempo todo. Passa a viver para os filhos e afeiçoa -se às suas flores e aos seus pinhais, vizinhos de Grijó.

DEDICAÇÃO À LEITURA CONTEMPORANÊA , SEM ABANDONAR OS SEUS CLÁSSICOS COMEÇA ESCREVER O ROMANCE :- CASA ABATIDA

Passa a acompanhar com maior frequência as leituras contemporâneas, sem contudo abandonar os seus clássicos; dá colaboração assídua à revista PORTUCALE, do Porto e a outras publicações; e sem pressa, vai elaborando o romance CASA ABATIDA com o sentido posto no tempo e no lugar em que nasceu.

No seu encantamento pela lingua latina, e para exemplificar a riqueza de seu léxico, mais de uma vez lhe ouvi que em nenhum outro idioma existia palavra para designar o pai que perde o filho. Mas o termo lá estava, no Latim de Cicero: «orbusx» o que perde o olho; e, por extensão, o que perde um filho.....

Por duas vezes veio a sofrer um rude golpe.Tinha tido os desgostos de perder irmãos, de enviuvar.

Mas eram situações que a vida comportava. Agora, não! Indcependentemente das circunstâncias, e para além das circunstâncias, a dor era anti-natural, incomportável. E não encontro onde ele tenha atingido, antes, a eloquência bíblica, viril, com que fulminou céus e terra nesse escabujar.

Em 4 de Julho de 1942 a PIDE/DGS na pessoa do seu filho Dr. António Carlos de Carvalho Ferreira Soares, presenteia-o com o assassinato. resiste e ganha tempo para publicar em 1943 a CASA ABATIDA , que dedica á memória do seu filho.

Quando trabalhava afincadamente para outra obra de tomo - O TROMBUDO- que ia dedicar á memória do seu filho Armando tendo sido também ele médico.

Não acabado por ter falecido em 9 de Janeiro de 1945.


DA LEITURA DA CASA ABATIDA

A cada passo se topam as raízes, muito à vista, quye prendem o autor à sua terra.
«Aldeia emproada e erguida nas tamancas era a de S. Salvador».
abre a narrativa; e só o cendal da fantasia evita que ao nome do padroeiro da terra se siga o topónimo, a completar a designação antigaz - S. Salvador de Grijó.
Mas logo vêm as coordenadas:
«Outra assim não havia do Porto para cá, até onde a estrada real avista a ria de Ovar e desde mar lá-baixo, pouco mais dum légua, até lá-acima ao mar de serras que vêm de riba-Douro e param além absortas.»
Alude-se em seguida ao «título bolorento de couto», que Grijó efectivamente teve, e a
«os vinte lugares de roda ao convento ermo e, à ilharga do convento, a igreja enorme, uma pompa de pedra que ao fundo de amplo terreiro está virada ao pôr do sol».
São depois os sinos todos, com nomes próprios hoje talvez obliterados na memória do próprio povo de Grijó - o Sino-Bento, o Caldeiro, o Pequeno - e é
«aquele Sino Grande de tom grave a retumbar, o Sino Grande de S.Salvador»
cujo clamor
«quando zunia o sul, chegava aos altos da Rechousa quase á vista do Porto; e, com outro vento e a outro lado, ia para além da Malaposta por onde a estrada de Lisboa.»
Nesta identificação de coisas e lugares não se pode esquecer o dado histórico referido ao filho de D. Sancho I cujas cinzas repousam no Mosteiro de Grijó e que ali tem estátua jacente. É aliás um trecho de rara beleza;
«S. Salvador.........tinha musgo de séculos nas pedras do mosteiro e nas do Cruzeiro Velho ali à beira onde caiu e se esvaiu em sangue o neto do primeiro rei afonsim, um D. Rodrigo Sanches.
Se foi em guerra qaue caiu o infante, ou em justa por amores, não vem a limpo nos livros.Lá empoçou de sangue real aquele chão e lá disse o adeus à vida, virado à nesga de céu que ali se encurva. Por sinal, a cerca altissima do mosteiro passa tão rente ao sítio onde o infante acabou, que embarra-lhe com a sombra; e por dentro da cerca, mesmo depois que se foram os frades, ainda ali ficaram corcovadinhos e chegados um ao outro os vultos de dois cedros anciãos com as grenhas pendidas para fora, num cicio de reza à cruz do morto.»
Não será indiscreto referir que esta página, escalando os muros da sua propriedade, terá reforçado o interesse que os Senhores da Quinta do Mosteiro certamente já tinham na conservação da formosa relíquia; pois fizeram substituir estes cedros, quando acabaram, por outros que lá estão, carinhosamente plantados no mesmo sítio.
A PANORÂMICA DE GRIJÓ:«S. Salvador desce de manso a encosta que vem da estrada real em direcção ao poente» e «abrange toda a redondeza desde o Outeiro da Senhora da Saúde (dos Carvalhos, acrescentamos nós) até ao Outeiro de Gesto» (a elevação neste lugar de Moselos, da Feira, mais conhecida por Monte do Murado).
A encosta vem da estrada real em direcção a poente/não havia outra aldeia assim do Porto para cá, até onde a estrada real avista a ria de Ovar - vistas colhidas por uma câmara que só pode estar a sudoeste, onde é Nogueira da Regedoura.
A referência ao Pinheiro das Sete Cruzes, árvore de forca improvisada por invasores franceses à face da estrada logo a seguir a Grijó (e acabada de cair há anos, carcomida): a «sequência» dos carros de bois que começavam a zumbir lá longe, ao passarem nos Vintoito (lugar ainda hoje de feira mensal em Lourosa, alternando com a dos dez) e que à passagem no Picoto já eram inferneira que forçava os carreteiros a falar aos berros, como os homens do mar; as « vizinhas caldas na baixa de S. Jorge onde rasteja o rio Uima» - outros tantos dados referenciais.
E vem o que poderá chamar-se o ex-libris..... do livro, tão mal entendido na capa da 2ª edição:
«Apartado do vaivém, mais abaixo onde a encosta embrandece num conchego de regaço, é que está o mosteiro, de frontaria toda em pedra com musgos encanecidos. Ali no coração da aldeia não se cansa de ver passar as eras, sózinho desde a saída dos Crúzios, e sózinho porque a cerca muito alta sustém a distância de respeito as casas e lugares, dizendo a tudo e a todos: ah-ou, "fasta p´ra trás!
Fugiram os frades todos,Ficou o mosteiro só...»
Escamoteados os dois primeiros versos da cantiga, que é onde nasce a rima:
Atirei com balas d´oiro ao mosteiro de Grijó....
Um dado local exacto, sem disfarce de nomes:
.........em S. Salvador, só num ano, acabaram formatura seis doutores e padres:-dr. da Quinta, o da Zenha, o Rios, o da Fábrica, o Ricardo e padre António das Vendas.»
Sem nada a ver com as pessoas e os sucessos nela postos por fantasia, a Casa das Presas tem um suporte real de reminiscência, um paradigma: a Zenha (açudida agora mesmo na última transcrição), casa ilustre de lavoura a dois passos do sitio onde o autor da narrativa nasceu; por onde passou horas de infância e de juventude; e onde fez amizades que duraram toda a vida (fora da familia ou do âmbito dos condiscípulos só com os Senhores Milheiro, da Casa da Zenha, ouvi algum dia o meu Pai tratar e ser tratado «por tu»).Foi na Zenha que em tempo de quadrilhas de ladrões, a seguir à época conturbada das lutas liberais, se consumou um assalto que perdurou na tradição local. A alusão ao lôbrego acontecimento tem seu quê de narração repetida à lareira muitas vezes:
«.......... nos fudégfeos o moinho velho onde a malta dos ladrões fechou o moço (há quantos anos!) e ele arrancou a tábua do soalho e saltou pelo cabouco mas partiu a perna e teve de ir de-gatinhas rogar quem acudisse (há quantos anos foi isso!)
É claro que as descrições não coincidem. E algumas daquelas águas da Casa das Presas poderão ter sido «canalizadas» da Quinta do Mosteiro ou doutro sítio qualquer, ou terão simplesmente brotado do rico manacial da imaginação do autor.
«Um Bernardes imaginoso e ardente» precisamente lhe chamou João Gaspar Simões no DIÁRIO DE LISBOA de 18-11-43, em larga apreciação que finaliza assim:
«Atrevo-me a considerar esta CASA ABATIDA como uma das obras mais formosamente concebidas e mais famosamente realizadas da nossa moderna literatura. Não me admirava vê-la um dia figurar entre as obras clássicas das letras portuguesas, ainda mesmo que o seu autor não escrevesse mais nada, se não nos ersquecermos de que uma obra para ser clássica não precisa de ser inteiramente perfeita.»
É de notar que só mais tarde o eminente homem de letras veio a saber alguma coisas mais do autor do livro.
Propus-me localizar a história efabulada em CASA ABATIDA, tarefa sem dificuldade: era só escancarar uma porta propositadamente deixada entreaberta.
*Pai do Dr.Antonio Carlos Ferreira Soares (Dr.Prata)